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O efeito Netflix: O que uma queda de 10% das ações da Netflix tem a ensinar sobre o cenário tributário brasileiro?
Por: Guilherme Zucoloto
A recente divulgação de resultados do terceiro trimestre de 2025 da Netflix tornou-se um marco para a comunidade empresarial global, e não por seus números operacionais. A companhia anunciou uma provisão extraordinária de US$ 619 milhões (aproximadamente R$ 3,3 bilhões), corroendo seu lucro e derrubando suas ações em quase 10% em um mesmo dia.
A causa, contudo, não foi uma aposta mal sucedida em conteúdo ou uma queda de assinantes, mas a materialização de um risco tributário específico de um único país: o Brasil.
O epicentro desta perda bilionária foi a CIDE-Tecnologia, uma contribuição de intervenção econômica que foi objeto de uma decisão histórica do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário (RE) 928.943. Este julgamento transformou um debate jurídico, antes restrito a especialistas, em uma manchete financeira internacional, servindo como um estudo de caso emblemático sobre a insegurança jurídica brasileira e seu impacto tangível no balanço de corporações globais.
Neste artigo, serão analisados os fundamentos da decisão do STF, seu impacto prático para a Netflix e as implicações estratégicas que todas as empresas com operações transfronteiriças devem agora considerar.
A Evolução da CIDE: Do fomento à inovação à controvérsia bilionária
Para compreender a decisão do STF, é crucial entender a natureza e a mutação da CIDE-Tecnologia, tributo em questão.
- A finalidade constitucional original: CIDE corresponde a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (art. 149 da CF), um tributo com destinação específica, e não um imposto de arrecadação geral. Instituída pela Lei 10.168/2000, sua lógica original era a de um “ciclo virtuoso”: onerar a aquisição de tecnologia estrangeira (licenças de patentes, transferência de tecnologia) para, com os recursos, financiar o desenvolvimento tecnológico nacional, principalmente via Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
- O Alargamento Controverso: O ponto de inflexão ocorreu com a Lei 10.332 de 2001. Esta norma expandiu drasticamente a hipótese de incidência para incluir remuneração por “serviços técnicos e de assistência administrativa e semelhantes” e, de forma fatalmente ampla, sobre “royalties, a qualquer título“. Na prática, a CIDE deixou de ser um tributo sobre transferência de tecnologia para se tornar uma contribuição sobre uma vasta gama de serviços internacionais e pagamentos de direitos, como o licenciamento de conteúdo audiovisual.
A decisão do STF no tema 914: A escolha pragmática pela arrecadação
A controvérsia sobre o alcance da lei de 2001 arrastou-se por mais de duas décadas, até ser selada recentemente pelo STF no julgamento do RE 928.943 (Tema 914). O cerne do debate foi a interpretação do “princípio da referibilidade”, um pilar doutrinário que exige uma correlação entre o grupo de contribuintes onerado e o setor econômico beneficiado pela intervenção estatal.
Duas teses colidiram no plenário:
- A tese vencida (Relator Min. Luiz Fux): Defendia uma referibilidade sob o ponto de vista legalista. Sob esta ótica, cobrar CIDE sobre serviços administrativos ou royalties (que não envolvem transferência de tecnologia) para financiar o FNDCT seria inconstitucional, por quebrar o nexo lógico entre o contribuinte e o benefício da intervenção, já que, como diz o nome, a CIDE-Tecnologia foi idealizada para incidir sobre transferência de Tecnologia.
- A tese vencedora (Divergência Min. Flávio Dino): Propôs uma releitura do princípio. Argumentou que a Constituição não exige um vínculo direto entre a atividade do contribuinte e o benefício, mas sim entre a arrecadação total e a despesa vinculada. Desde que 100% dos recursos da CIDE sejam destinados à ciência e tecnologia, o legislador teria liberdade para escolher a base de incidência, ou seja, uma interpretação mais casuística e menos legalista.
Por uma maioria apertada de 6 a 5, a tese vencedora prevaleceu. A Corte fez uma escolha pragmática: uma decisão restritiva poderia causar um colapso no FNDCT, que depende da CIDE para 74% de sua arrecadação, gerando perdas estimadas em R$ 10 bilhões. O STF optou por preservar a fonte de financiamento, flexibilizando a doutrina tributária sedimentada ao longo de décadas.
A tese final firmada (Tema 914) validou a constitucionalidade da cobrança ampla, confirmando que a CIDE incide sobre remessas de royalties e serviços, mesmo que não haja transferência de tecnologia.
O impacto prático: O efeito Netflix
A decisão abstrata do STF encontrou sua consequência prática mais notória no balanço da Netflix.
O modelo de negócios da empresa envolve pagamentos da subsidiária brasileira à matriz nos EUA pela licença de uso do catálogo de filmes e séries. Esses pagamentos enquadram-se perfeitamente na categoria de “royalties a qualquer título”, validada pelo STF.
O choque financeiro foi agravado por um fator crucial: a Netflix operava com base em uma decisão judicial anterior, de instância inferior, obtida em 2022, que afastava a incidência da CIDE por entender que não havia transferência de tecnologia. A decisão do STF no Tema 914, por ter força de repercussão geral, reverteu esse cenário.
Pelas normas contábeis, o risco da perda deixou de ser “possível” e tornou-se “provável”. Isso forçou a empresa e seus auditores a reconhecerem imediatamente a totalidade do passivo retroativo acumulado desde 2022.
O resultado foi devastador para os indicadores do trimestre:
- Provisão: US$ 619 milhões (R$ 3,3 bilhões).
- Lucro líquido: Caiu para US$ 2,5 bilhões, contra uma expectativa de US$ 3 bilhões.
- Margem operacional: Despencou de uma previsão de 31,5% para 28,0%.
- Mercado: As ações caíram quase 10% após o anúncio, com o CFO da empresa classificando o tributo como “único no mundo” e um “custo de fazer negócios no Brasil”.
Implicações estratégicas: O risco pós-STF
A decisão do STF e o “Efeito Netflix” transcendem um caso isolado e servem como um divisor de águas para o planejamento tributário no Brasil.
- Agravamento da insegurança jurídica: A decisão, tomada por margem mínima, validou uma interpretação expansiva que, na visão de muitos especialistas, distorce a finalidade original do tributo. O precedente ensina que o risco fiscal no Brasil não se limita a mudanças legislativas futuras, mas inclui a reinterpretação judicial de leis existentes com efeito retroativo.
- Impacto setorial amplo: O precedente não se aplica apenas à Netflix. Todas as empresas que remetem pagamentos ao exterior por royalties, licenças de software (sem transferência de tecnologia) e serviços técnicos ou administrativos estão agora expostas à mesma contingência. Isso afeta diretamente plataformas de streaming (Amazon, Spotify), empresas de software (Google, Microsoft) e qualquer multinacional com contratos de serviço intercompany.
- Fortalecimento da tributação digital: A decisão do STF fortalece a narrativa do governo de que é preciso garantir que empresas globais de tecnologia contribuam para o desenvolvimento nacional. Este precedente pode acelerar outras pautas legislativas, como o “PL do streaming” ou uma eventual “Cide-Internet”.
Conclusão e recomendações
O caso CIDE-Netflix é a materialização definitiva do “Custo Brasil”. Demonstra como a volatilidade interpretativa do nosso sistema jurídico pode impor custos bilionários e retroativos, transformando o planejamento de longo prazo em um exercício de alto risco.
Embora o STF tenha feito uma escolha pragmática para assegurar a arrecadação, o custo foi um aumento sensível na percepção de risco-país.
Diante deste novo cenário, a gestão de risco fiscal exige uma postura mais robusta. É imperativo que empresas com fluxos de pagamentos internacionais:
- Revisem imediatamente todos os contratos internacionais de prestação de serviços, licenciamento de software e royalties para mensurar o passivo potencial.
- Adequem seu planejamento tributário para incorporar o “pior cenário” (a interpretação mais ampla da lei) como uma possibilidade real.
- Integrem as áreas jurídica, fiscal e financeira para que o risco tributário seja compreendido em sua dimensão contábil e estratégica, e não apenas processual.
A complexidade da matéria e a gravidade de seus impactos financeiros exigem uma análise pormenorizada de cada operação. Nossa equipe de Direito Tributário está à inteira disposição para assessorar sua empresa na navegação deste novo e desafiador cenário, desenhando a estratégia mais segura para garantir a conformidade e mitigar exposições fiscais.
